Comprador de imóvel assume riscos ao não exigir certidões judiciais
Quem compra imóvel “enrolado” em processo judicial fica sujeito a suportar as consequências, a menos que consiga provar que não tinha como saber da existência do litígio – e o ônus dessa prova é todo seu. Do contrário, o comprador terá de se submeter aos efeitos da decisão que a Justiça vier a dar à disputa entre o vendedor e a outra parte.
A advertência foi feita na Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) pela ministra Nancy Andrighi, relatora de um recurso cujo autor tentava evitar a perda do apartamento que havia adquirido de um banco. Este, por sua vez, arrematara o imóvel em leilão, no curso de uma execução hipotecária.
“O adquirente de qualquer imóvel deve acautelar-se, obtendo certidões dos cartórios distribuidores judiciais que lhe permitam verificar a existência de processos envolvendo o vendedor, dos quais possam decorrer ônus (ainda que potenciais) sobre o imóvel negociado”, afirmou a ministra. A decisão da Turma, contrária ao recurso, foi unânime.
Em 1986, a Caixa Econômica Federal executou a dívida de um casal no Rio de Janeiro e levou seu apartamento a leilão, sendo arrematante o Banco Morada S/A. O casal entrou na Justiça e quase seis anos depois conseguiu anular o leilão.
Enquanto a Justiça discutia os recursos do caso, em 1996 – quando já havia sentença anulando a arrematação – o Banco Morada assinou contrato de promessa de venda com outra pessoa, negócio finalmente concluído em 2001. Em 2007, o casal obteve decisão favorável à reintegração na posse do imóvel e ao cancelamento de quaisquer registros de transferência da propriedade para terceiros.
O Código de Processo Civil diz que, na compra de um bem sob litígio, a sentença judicial estende seus efeitos ao comprador. Segundo a ministra Nancy Andrighi, essa regra deve ser atenuada para se proteger o direito do comprador que agiu de boa-fé, “mas apenas quando for evidenciado que sua conduta tendeu à efetiva apuração da eventual litigiosidade da coisa adquirida”.
Desde 1985, para a transferência de imóveis em cartório, a legislação exige que sejam apresentadas certidões sobre existência ou não de processos envolvendo o bem objeto da transação e as pessoas dos vendedores.
“Não é crível que a pessoa que adquire imóvel desconheça a existência da ação distribuída em nome do proprietário, sobretudo se o processo envolve o próprio bem”, acrescentou a relatora. Ela disse ainda que “só se pode considerar de boa-fé o comprador que adota mínimas cautelas para a segurança jurídica da sua aquisição”.
O mais grave, no caso, é que, embora não houvesse registro da existência do processo junto à matrícula do apartamento no cartório de imóveis, ainda assim o contrato de compra e venda informava que o comprador tinha solicitado as certidões dos distribuidores judiciais, estando, em princípio, ciente das pendências existentes sobre o imóvel.
O recurso foi interposto contra decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), que já havia concordado com a reintegração do casal (os proprietários originais) na posse do imóvel. Ao tomar essa decisão, o TRF2 observou que nada impedia o comprador de mover ação indenizatória contra o Banco Morada, tanto pelo valor investido no negócio como por eventuais benfeitorias realizadas no apartamento.
Coordenadoria de Editoria e Imprensa
ÍNTEGRA DA DECISÃO
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 27.358 - RJ (2008/0159701-3)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : ANTÔNIO MARTINS DE FREITAS JÚNIOR
ADVOGADO : ANDRÉ SILVA DE LIMA E OUTRO(S)
RECORRIDO : UNIÃO
INTERES. : OTTONI FARIA DE OLIVEIRA E CÔNJUGE
ADVOGADO : CÉLIA MARIA DOS SANTOS LOPES E OUTRO(S)
EMENTA
PROCESSO CIVIL. ALIENAÇÃO DE BEM IMÓVEL LITIGIOSO. TERCEIRO ADQUIRENTE. EXTENSÃO DOS EFEITOS DA SENTENÇA. LIMITES.
1. A regra do art. 42, § 3º, do CPC, que estende ao terceiro adquirente os efeitos da coisa julgada, somente deve ser mitigada quando for evidenciado que a conduta daquele tendeu à efetiva apuração da eventual litigiosidade da coisa adquirida. Há uma presunção relativa de ciência do terceiro adquirente acerca da litispendência, cumprindo a ele demonstrar que adotou todos os cuidados que dele se esperavam para a concretização do negócio, notadamente a verificação de que, sobre a coisa, não pendiam ônus judiciais ou extrajudiciais capazes de invalidar a alienação.
2. Na alienação de imóveis litigiosos, ainda que não haja averbação dessa circunstância na matrícula, subsiste a presunção relativa de ciência do terceiro adquirente acerca da litispendência, pois é impossível ignorar a publicidade do processo, gerada pelo seu registro e pela distribuição da petição inicial, nos termos dos arts. 251 e 263 do CPC. Diante dessa publicidade, o adquirente de qualquer imóvel deve acautelar-se, obtendo certidões dos cartórios distribuidores judiciais que lhe permitam verificar a existência de processos envolvendo o comprador, dos quais possam decorrer ônus (ainda que potenciais) sobre o imóvel negociado.
3. Cabe ao adquirente provar que desconhece a existência de ação envolvendo o imóvel, não apenas porque o art. 1.º, da Lei n.º 7.433/85, exige a apresentação das certidões dos feitos ajuizados em nome do vendedor para lavratura da escritura pública de alienação, mas, sobretudo, porque só se pode considerar, objetivamente, de boa-fé o comprador que toma mínimas cautelas para a segurança jurídica da sua aquisição.
4. Recurso ordinário em mandado de segurança a que se nega provimento.
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
Cuida-se de recurso ordinário em mandado de segurança interposto por ANTÔNIO MARTINS DE FREITAS JÚNIOR, com fundamento no art. 105, II, “b”, da CF, contra acórdão proferido pelo TRF da 2ª Região.
Ação: de anulação de leilão e arrematação, ajuizada por Ottoni Faria de Oliveira e Neuza Larieu de Oliveira (“AUTORES”) em desfavor de Morada S.A. – Crédito Imobiliário, atual denominação social de Banco Morada S.A. (“MORADA”) e Caixa Econômica Federal (“CEF”) (fls. 23/26).
Sentença: julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados na inicial, para declarar a nulidade do leilão extrajudicial do apartamento nº 910 do prédio localizado na Av. Professor Fauso Moreira, 406 (fls. 32/39).
Cumprimento da sentença: negado provimento às apelações interpostas por MORADA e CEF (fls. 40/49) e tendo havido recurso especial apenas por parte da instituição financeira, ainda assim somente para discutir sua legitimidade para figurar no polo passivo da ação, os AUTORES deram início ao cumprimento da sentença.
Decisão interlocutória: o Juiz determinou a reintegração dos AUTORES na posse do mencionado imóvel (fl. 140), bem como o cancelamento de todo e qualquer registro de transferência de domínio do bem (fl. 142).
Mandado de segurança: impetrado pelo recorrente, sob a alegação de que adquiriu o imóvel há mais de 10 anos, por meio de promessa de compra e venda celebrada com MORADA, bem como que nunca foi parte, nem sequer teve notícia da existência da ação anulatória (fls. 02/11).
Acórdão: o TRF da 2ª Região denegou a segurança, nos termos do acórdão (fls. 508/518) assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL – CIVIL – SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO – FINANCIAMENTO DE COMPRA DE BEM IMÓVEL – CONTRATO DE MÚTUO DE DINHEIRO – GARANTIA REAL HIPOTECÁRIA – PROCEDIMENTO DE EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL – DECRETO-LEI N.º 70/66 – ANULAÇÃO – REINTEGRAÇÃO NA POSSE DIRETA – CANCELAMENTO DE REGISTROS DE AQUISIÇÃO REALIZADOS EM CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS – EXECUÇÃO – IMPETRAÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA POR TERCEIRO – ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA – COMPRA INTER VIVOS DA COISA LITIGIOSA – SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL – ABERTURA DOS LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA MATERIAL – VÍCIOS DA POSSE DIRETA – DENEGAÇÃO DO WRIT.
I – Como o Impetrante, apresentando-se como Terceiro, impugna atos processuais dos quais decorreram a reintegração de determinado casal na posse direta sobre o bem imóvel em foco e o cancelamento de quaisquer registros de aquisição do mesmo realizados em Cartório do Registro de Imóveis, a impetração do presente mandado de segurança, quanto a esse aspecto, vai ao encontro do entendimento consagrado através do Enunciado n.º 202 da Súmula do STJ.
II – Não tendo o Impetrante sido parte do processo anterior, não obstante, ele é atingido indiretamente pela eficácia do decisum, em razão de se apresentar como terceiro juridicamente interessado; e, mais do que isso, ele é atingido pela imutabilidade do mesmo, estando abrangido pelos limites subjetivos da coisa julgada material, em razão de assumir, já no curso do processo supra referido e na respectiva fase cognitiva, a posição jurídica de Substituído Processual (que é Parte em sentido material), conforme o art. 42, § 3.º, do CPC/1973; e, nesse passo, em razão de apresentar, após a aquisição inter vivos e a título singular a coisa em foco já litigiosa por meio de compra, conforme os arts. 42, caput, c/c 219, caput, interesse jurídico igual ao de uma das Partes do processo.
III – Mesmo que assim não fosse, o Impetrante não se apresenta como terceiro de boa-fé, eis que conhecia inequivocamente a existência do processo anterior e provavelmente a anulação de procedimento de execução extrajudicial na forma do Decreto-lei n.º 70/1966, fundada em garantia real hipotecária de contrato de mútuo de dinheiro celebrado entre a CEF – Caixa Econômica Federal e o casal, a qual atingira negativamente a arrematação do mesmo por determinado Banco e, por conseguinte, a própria posse por este ulteriormente transmitida a ele.
IV – Assim, é possível a reintegração do casal na posse direta sobre o bem imóvel em foco e o cancelamento de quaisquer registros de aquisição do mesmo realizados em Cartório do Registro de Imóveis; e não possibilita posse direta pelo Impetrante sobre o mesmo o exercício do direito subjetivo de retenção pela realização de benfeitorias; o que, não obstante, não impede, em tese, que o Impetrante possa, ulterior e eventualmente, por meio da via própria, deduzir pleito indenizatório, concernente à realização de benfeitorias, e/ou à própria compra do mesmo.
Recurso ordinário: alega ter agido de boa-fé, bem como que o acórdão recorrido violou os arts. 42, § 3º, e 472 do CPC; 167 e 169 da LRP; e 1.201, parágrafo único, e 1.242 do CC02 (arts. 490, parágrafo único, e 551 do CC/16) (fls. 520/542).
Parecer do Ministério Público: o i. Subprocurador-Geral da República Dr. Antônio Fonseca opinou pelo não provimento do recurso ordinário (fls. 586/591).
É o relatório.
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):
Cinge-se a lide a determinar o alcance da regra do art. 42, § 3º, do CPC, a qual fixa os limites da extensão dos efeitos da sentença – proferida em ação tendo por objeto imóvel – ao terceiro adquirente desse bem litigioso.
I. Do cabimento do mandado de segurança.
Inicialmente, cumpre ressaltar que não se olvida da adequação da via eleita pelo recorrente para impugnar a decisão que determinou a expedição de mandado de reintegração na posse.
Como bem ressaltou o TRF da 2ª Região, o recorrente ostenta a condição de terceiro, circunstância que atrai a incidência da Súmula 202/STJ.
Ademais, em hipótese análoga à dos autos, o STJ já decidiu que:
Sendo o ato questionado pela impetrante não a penhora ou a arrematação do bem na execução, mas o cancelamento do registro do seu título de aquisição do domínio, efetuado com base em mandado expedido pelo Juiz da execução do qual a impetrante não teve notícia, irradiando-se os seus efeitos jurídicos a terceiro estranho ao processo (...), admissível o debate em sede de mandado de segurança, a dispensar a oposição dos embargos de terceiro (RMS 10.208/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 12.04.99. Mesmo sentido: RMS 24.293/RJ, 3ª Turma, Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 05.11.07).
De forma semelhante, esta Corte também já assentou que:
Na hipótese de execução definitiva de sentença determinativa de reintegração de posse, proferida em processo que não foi integrado pelo terceiro comodatário, este pode impetrar mandado de segurança com o objetivo de impedir violação ao seu direito líquido e certo (AgRg no REsp 329.854/RJ, 3ª Turma, minha relatoria, DJ de 19.11.2001. No mesmo sentido: RMS 30.301/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, DJe de 03.02.2010).
Sendo assim, não há nenhum impedimento a que se avance na apreciação do mérito do presente recurso.
II. Da ofensa dos limites subjetivos da coisa e julgada e do devido processo legal. Violação do art. 472 do CPC.
O recorrente sustenta que não poderia ser alcançado pelos efeitos da decisão que anulou o leilão extrajudicial do imóvel. Afirma que, nos termos do art. 472 do CPC, a imutabilidade da coisa julgada “não pode atingir terceiros, estranhos ao processo onde aquela autoridade se formou” (fl. 530).
Há de se considerar, porém, que o recorrente adquiriu imóvel litigioso, sujeitando-se, portanto, ao conteúdo do art. 42, § 3º, do CPC, que excepciona a regra do art. 472 do CPC, possibilitando que a sentença proferida entre as partes originárias repercuta na esfera jurídica do terceiro adquirente.
Conforme anota Fredie Didier Jr., “o fundamento da extensão da coisa julgada ao terceiro adquirente/cessionário, mesmo que não tenha intervindo no processo, é exatamente a legitimação extraordinária atribuída ao alienante/cedente”, concluindo que “a coisa julgada proveniente de um processo conduzido pelo substituto processual vincula o substituído” (Curso de Direito Processual Civil, vol. I, 11ª ed. Salvador: Editora Podium, 2009, p. 402).
Com efeito, a partir da alienação do bem litigioso, o alienante permanece com legitimidade ad causam, discutindo, em nome próprio, interesse alheio, na condição de substituto processual do adquirente. Altera-se apenas a natureza jurídica da legitimação do alienante, que era ordinária e passa a ser extraordinária, em virtude da superveniente substituição processual.
Nesse contexto, por se subsumirem perfeitamente à hipótese dos autos, são de grande valia os ensinamentos de Cândido Dinamarco. Leciona o autor que:
O terceiro adquirente da coisa, já sendo ela litigiosa, suportará a execução para entrega que sobre ela vier a ser instaurada, sem embargo de não ter figurado como parte no processo de conhecimento: (...) em face dele, adquirente, será expedido mandado de busca-e-apreensão (em caso de bem móvel) ou de imissão na posse (imóvel) (Instituição de Direito Processual Civil, vol. II, 6ª ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2009, p. 83).
Também não se constata violação dos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, visto que, nos termos do art. 626 do CPC, “alienada a coisa quando já litigiosa, expedir-se-á mandado contra o terceiro adquirente, que somente será ouvido depois de depositá-la”.
Assim, não procedem os argumentos deste item do recurso.
III. Da presunção relativa de ciência do terceiro adquirente acerca da litispendência. Violação do art. 42, § 3º, do CPC.
De acordo com o recorrente, “a regra contida no art. 42, § 3º, do CPC, deve ser interpretada com temperamento e em consonância com as demais normas e princípios do ordenamento jurídico” (fl. 531).
De fato, a boa-fé do terceiro adquirente deve ser protegida, mitigando-se a incidência da norma que lhe estende os efeitos da coisa julgada, mas apenas quando for evidenciado que sua conduta tendeu à efetiva apuração da eventual litigiosidade da coisa adquirida.
Em outras palavras, há uma presunção relativa de ciência do terceiro adquirente acerca da litispendência, cumprindo a ele, nos termos do art. 333 do CPC, demonstrar que adotou todos os cuidados que dele se esperavam para a concretização do negócio, notadamente a verificação de que, sobre a coisa, não pendiam ônus judiciais ou extrajudiciais capazes de invalidar a alienação.
No escólio de José Carlos Barbosa Moreira, “a pessoa a quem a presunção desfavorece suporta o ônus de demonstrar o contrário, independentemente de sua posição processual, nada importando o fato de ser autor ou réu” (As presunções e a prova, in Temas de Direito Processual, 1.ª série, 1.ª ed., São Paulo: Saraiva, 1977, p. 60).
À hipótese dos autos também se aplica a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, que tem por fundamento a probatio diabolica, isto é, a prova de difícil ou impossível realização para uma das partes e que se presta a contornar a teoria de carga estática da prova, adotada pelo art. 333 do CPC, que nem sempre decompõe da melhor forma o onus probandi, por assentar-se em regras rígidas e objetivas.
Ao comentar essa teoria, Humberto Theodoro Junior anota que, “conforme as particularidades da causa e segundo a evolução do processo, o Juiz pode deparar-se com situações fáticas duvidosas em que a automática aplicação da distribuição legal do onus probandi não se mostra razoável para conduzi-lo a uma segura convicção acerca da verdade real” (Curso de Direito Processual Civil, vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 43ª ed., 2008, p. 191).
Com base na teoria da distribuição dinâmica, o ônus da prova recai sobre quem tiver melhores condições de produzi-la, conforme as circunstâncias fáticas de cada caso.
Embora não tenha sido expressamente contemplada no CPC, uma interpretação sistemática da nossa legislação processual, inclusive em bases constitucionais, confere ampla legitimidade à aplicação dessa teoria, levando-se em consideração, sobretudo, os princípios da isonomia (arts. 5º, caput, da CF, e 125, I, do CPC), do devido processo legal (art. 5º, XIV, da CF), do acesso à justiça (art, 5º XXXV, da CF), da solidariedade (art. 339 do CPC) e da lealdade e boa-fé processual (art. 14, II, do CPC), bem como os poderes instrutórios do Juiz (art. 355 do CPC).
Aplicando-se a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova à hipótese específica da alienação de bem litigioso, conclui-se que o terceiro adquirente reúne plenas condições de demonstrar ter agido de boa-fé, enquanto que a tarefa que incumbiria ao seu adversário, de provar o conluio daquele com o alienante, se mostra muito mais árdua.
IV. Da inexistência de averbação da sentença na matrícula do imóvel e da presunção de boa-fé do terceiro adquirente. Violação dos arts. 167 e 169 da LRP; e 1.201, parágrafo único, e 1.242 do CC/02.
Alega o recorrente que os AUTORES “não realizaram a averbação da sentença por eles obtida na ação ajuizada contra a Caixa Econômica Federal (...) fato que, por si só, afasta a possibilidade de aplicação do art. 42, § 3º, do CPC” (fl. 534).
Entretanto, é impossível ignorar a publicidade do processo, gerada pelo seu registro e pela distribuição da petição inicial, nos termos dos arts. 251 e 263 do CPC, na hipótese de venda de imóvel de pessoa demandada judicialmente, ainda que essa circunstância não esteja averbada na matrícula.
No particular, o próprio acórdão recorrido ressalta constar “dos arts. 131 e ss. do Provimento nº 01/2001 (ou Consolidação Normativa) da Corregedoria-Geral da Justiça Federal da 2ª Região que quaisquer ações, incluindo as relativas a bens imóveis, devem ser objeto de registro no Setor de Distribuição” (fl. 514).
Diante dessa publicidade, o adquirente de qualquer imóvel deve acautelar-se, obtendo certidões dos cartórios distribuidores judiciais que lhe permitam verificar a existência de processos envolvendo o vendedor, dos quais possam decorrer ônus (ainda que potenciais) sobre o imóvel negociado.
No julgamento do REsp 618.625/SC, 3ª Turma, minha relatoria, DJ de 11.04.2008, consignei que:
A apresentação das referidas certidões, no ato da lavratura de escrituras públicas relativas a imóveis, é obrigatória, ficando, ainda, arquivadas junto ao respectivo Cartório, no original ou em cópias autenticadas (cfr. §§ 2.º e 3.º, do art. 1.º, da Lei n.° 7.433/1985).
No mesmo sentido, a manifestação do i. Min. Aldir Passarinho Junior no julgamento do REsp 943.951/PR, 4ª Turma, DJ de 08.10.2007, no qual ressalva que seu entendimento pessoal:
Se harmoniza com a orientação sobre o tema do Egrégio Supremo Tribunal Federal, no sentido de que bastante a prévia existência de ação para que se configure a fraude à execução, sendo absolutamente possível ao adquirente a obtenção de certidões junto aos cartórios de distribuição, para informar-se sobre a situação pessoal dos alienantes e do imóvel, cientificando-se da existência de demandas que eventualmente possam implicar na constrição da unidade objeto do contrato.
Na análise dessa situação, Yussef Said Cahali pondera que:
Não encontramos fundamentação convincente (se é que existe), para a afirmação, no caso, de uma pretensa presunção de boa-fé ou inocência em favor do adquirente que terá deixado de tomar, quando do negócio, as cautelas elementares devidas, beneficiando-se de sua própria omissão ou desídia (Fraudes contra credores. São Paulo: RT, 4ª ed., p. 506).
Dessa forma, se, a partir da vigência da Lei n° 7.433/85, na lavratura da escritura pública relativa a imóvel, o tabelião obrigatoriamente faz constar, “no ato notarial, a apresentação do documento comprobatório” dos “feitos ajuizados”, não é crível que a pessoa que adquire imóvel desconheça a existência da ação distribuída em nome do proprietário, sobretudo se o processo envolve o próprio bem.
Além disso, a ausência de verificação, pelo adquirente, das ações judiciais propostas em face do alienante, viola a boa-fé objetiva, por contrariar padrão de conduta mínimo exigível na celebração dessa espécie de avença.
Realmente, as elevadas somas envolvidas nessa modalidade de negócio e o fato de ser do conhecimento de todos as formalidades a ele inerentes, permitem supor que o adquirente sabe dos gravames existentes sobre o imóvel, assumindo o risco futuro da transação ser considerada fraudulenta.
Nesse contexto, cabe ao comprador provar que desconhecia a existência de ação em nome do vendedor do imóvel, não apenas em decorrência da exigência do art. 1º da Lei nº 7.433/85, mas, sobretudo, porque só se pode considerar, objetivamente, de boa-fé, o comprador que adota mínimas cautelas para a segurança jurídica da sua aquisição.
Retomando os ensinamentos de Humberto Theodoro Junior, encontramos como exemplo de aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova à alienação de bem imóvel em fraude de execução, tendo o autor destacado:
É obrigatória a apresentação de certidões negativas de ações para a lavratura do ato notarial, de modo que, se isto não se realiza a contento, a falha é do adquirente que tinha condições e, até mesmo, o dever de se certificar das demandas pendentes contra o alienante, das quais poderia decorrer sua insolvência (...). Por isso, para invocar a boa-fé para eximir-se das consequências da fraude de execução, o terceiro terá de demonstrar que, não obstante o zelo com que diligenciou a pesquisa e certificação de inexistência de ações contra o alienante, não chegou a ter conhecimento daquela que, in concreto, existia e, na realidade, acabou sendo fraudada (ob. cit., p. 191).
Em suma, na alienação de imóveis litigiosos, ainda que não haja averbação dessa circunstância na matrícula, subsiste a presunção relativa de ciência do terceiro adquirente acerca da litispendência, cabendo a este provar a existência de causa passível de ilidir essa presunção.
Aliás, o CC/02, apesar de assegurar ao adquirente o direito de “ser havido como dono do imóvel” até que se promova, “por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro” (art. 1.245, § 2º), ressalva que “cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente” (art. 1.247, parágrafo único). Não obstante esses dispositivos legais não estivessem vigentes à época dos fatos, eles demonstram a evolução do entendimento sobre o tema, evidenciando a coerência da exegese feita linhas acima.
A partir das considerações supra mencionadas, cumpre analisar o comportamento do recorrente na espécie, de modo a averiguar se procede sua alegação no sentido de que “não há nada nestes autos que impeça o reconhecimento da [sua] boa-fé” (fl. 537).
Para tanto, devemos nos valer do panorama fático traçado pelo TRF da 2ª Região que tomou o cuidado de descrever, em ordem cronológica, os acontecimentos relevantes ao deslinde da controvérsia. De acordo com o acórdão recorrido:
Constata-se que a compra pelo casal do bem imóvel em foco ocorreu em 31/03/1981; que esta compra foi registrada em Cartório do Registro de Imóveis em 03/11/1981 (fl. 16); que a arrematação do mesmo pelo Banco Morada S. A. ocorreu em 11/07/1986, após o procedimento supra descrito; que o processo supra referido foi inaugurado em 24/11/1986 (fls. 147-54, 162-9 e 424-31); que aquela arrematação foi registrada em Cartório do Registro de Imóveis em 06/08/1987 (fl. 17); que a anulação do procedimento supra descrito ocorreu em 23/04/1992 (fls. 32-9, 198-204 e 322-8); que a promessa de venda pelo Banco Morada S. A. do mesmo ocorreu em 02/01/1996 (fls. 287-90 e 444-7); que a compra pelo Impetrante do bem imóvel em foco ocorreu em 12/07/2001 (fls. 19/20 e 448/9); que esta compra foi registrada em Cartório do Registro de Imóveis em 18/01/2002 (fl. 18); que o cancelamento de quaisquer registros de aquisição do mesmo realizados em Cartório do Registro de Imóveis (fls. 16-8) ocorreu em 27/02/2007 (fls. 140-2 e 418-20); e que a reintegração do casal na posse direta sobre o bem imóvel em foco ocorreu em 02/04/2007 (fls. 140/3, 159-61, 291-3, 418/21 e 436-8).
Verifica-se, portanto, que no ato de assinatura do compromisso de venda e compra pelo recorrente, já havia sentença, proferida há quase 04 anos, declarando nula a arrematação do imóvel pela MORADA. Quando da conclusão do negócio, essa decisão já contava com quase 10 anos.
Apesar de reconhecer que “não havia qualquer registro [na matrícula] da existência de processo envolvendo o bem imóvel em foco”, o TRF da 2ª Região afirma constar do contrato de venda e compra “que foram apresentados, dentre outros documentos, 'certidão de ações cíveis e criminais da Justiça Federal e que o outorgado [ou seja, o impetrante] [tinha] pleno conhecimento e aceite das distribuições apontadas nas certidões, contra o nome do outorgante [ou seja, o Banco Morada S.A.], nada tendo a opor'” (fl. 515).
Dessarte, tendo sido dado acesso ao recorrente à certidão de distribuição da Justiça Federal, não há como negar sua ciência acerca da existência da ação anulatória, em trâmite na 30ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro desde 1986.
Diante dessas evidências – cujo afastamento exigiria o reexame de provas, procedimento vedado pela Súmula 07/STJ –, conclui-se que o recorrente adquiriu o imóvel ciente de se tratar de bem litigioso, sujeitando-se à regra do art. 42, § 3º, do CPC.
Essa dedução é corroborada pela assertiva do acórdão recorrido, ainda que perfunctória, de que o recorrente “pagou irrisório preço pelo bem imóvel (...), o que revela uma provável tentativa de equilibrar a vantagem da compra do mesmo e a desvantagem do risco de anulação do procedimento supra descrito” (fl. 515).
Não se constata, pois, nenhuma ofensa aos arts. 167 e 169 da LRP; e 1.201, parágrafo único, e 1.242 do CC02 (arts. 490, parágrafo único, e 551 do CC/16).
V. Da extrapolação dos limites do mandado de segurança.
Ao contrário do que procura fazer crer o recorrente, o TRF da 2ª Região não se imiscuiu em matérias incognoscíveis em sede de mandado de segurança.
No que concerne ao valor envolvido no negócio, o acórdão recorrido deixa claro que a análise foi feita “primo ictu oculi” (fl. 515), justamente porque uma avaliação mais acurada demandaria dilação probatória. Tanto que a assertiva foi feita ao final, apenas como reforço do fundamento central do julgado, de que o recorrente “conhecia inequivocamente a existência do processo [ação anulatória]” (fl. 515).
Com relação ao direito de retenção, o argumento objetivou afastar em definitivo a concessão do writ, evidenciando a inexistência do direito líquido e certo do recorrente de permanecer na posse direta do imóvel, demonstrando que não haveria boa-fé a autorizar a incidência do art. 1.219 do CC/02 (art. 516 do CC/16).
Por derradeiro, quanto à possibilidade de o próprio recorrente ajuizar ação indenizatória relativa às benfeitorias, as assertivas do Tribunal Federal foram feitas obiter dictum, sem nenhuma força vinculante para o julgado.
VI. Conclusão.
Ante todo o exposto, tendo comprado o imóvel ciente da sua litigiosidade, os efeitos da ação anulatória da arrematação se estendem ao recorrente, na qualidade de terceiro adquirente, ex vi do art. 42, § 3º, do CPC, razão pela qual a determinação de reintegração dos AUTORES na posse do bem não implicou ofensa a nenhum direito liquido e certo do recorrente.
Forte nessas razões, NEGO PROVIMENTO ao recurso ordinário em mandado de segurança.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao recurso em mandado de segurança, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Massami Uyeda, Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Vasco Della Giustina votaram com a Sra. Ministra Relatora. Dr(a). CHRISTIAN BARBALHO DO NASCIMENTO, pela parte RECORRENTE: ANTÔNIO MARTINS DE FREITAS JÚNIOR.
Brasília (DF), 05 de outubro de 2010(Data do Julgamento)
MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora
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