Um
princípio básico estabelecido na Constituição brasileira é o da
dignidade da pessoa humana. A partir dele, surgem os direitos e
garantias fundamentais, direcionados à proteção e ao bem-estar de todos.
Entretanto, mesmo cercadas de direitos assegurados pelo ordenamento
jurídico, algumas pessoas são incapazes de invocá-los e de gerir seus
próprios interesses, por um motivo permanente ou temporário. Para elas, o
Código Civil (CC) instituiu a curatela.
O
instituto não se confunde com o da tutela, previsto no artigo 1.728 do
CC. O tutor é nomeado para responder pelo menor após o falecimento dos
pais ou no caso de ausência destes ou, ainda, na hipótese de perda do
poder familiar. O curador é nomeado para administrar os interesses do
maior incapaz ou impossibilitado, com respeito aos limites
predeterminados pelo juiz, que dependem do grau e do tipo da
incapacidade.
Apesar
disso, no âmbito penal, poderá ser nomeado curador ao menor. No
julgamento do RHC 21.667, o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, então na
Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) - hoje ele integra a
Primeira Turma -, explicou que “a função do curador no âmbito do
processo penal brasileiro tem como principal característica a proteção
do menor, velando-lhe pelos direitos e garantias, bem como pela validade
de sua manifestação de vontade”.
Há ainda a curadoria especial, exercida pela Defensoria Pública. Veja mais à frente.
Interdição
De
acordo com o artigo 1.768 do CC, o pedido de interdição do incapaz será
feito pelo cônjuge, por um dos pais ou por parente próximo. Em caso de
doença mental grave, ou quando o pedido não for feito por uma das
pessoas citadas, caberá ao Ministério Público (MP) fazê-lo. O cônjuge
não separado será, preferencialmente, o curador. Se o incapaz não o
tiver, um dos pais. Se não for possível, o descendente mais próximo. Na
falta de todas essas pessoas, a escolha caberá ao juiz.
Deficientes
mentais, alcoólatras, viciados em drogas, pessoas que não podem
exprimir suas vontades, portadores de necessidades especiais e pródigos
(aqueles que gastam o dinheiro de forma compulsiva) estão sujeitos à
interdição e, consequentemente, à curatela. A lei também prevê a
assistência para o nascituro, quando o pai morre durante a gravidez e a
mãe não possui o poder familiar.
Um
caso peculiar, previsto no artigo 1.780 do CC, refere-se à curatela
requerida pela própria pessoa que se considera incapaz, não por uma
limitação mental, mas devido a alguma enfermidade ou deficiência física.
Nesse caso, a assistência é mais restrita, pois poderá abranger somente
alguns dos negócios ou bens do curatelado.
Muitos casos envolvendo curatela já chegaram ao STJ. Confira alguns.
Recompensa
O
nomeado pelo juiz para assistir o incapaz, muitas vezes, precisa abrir
mão de seus próprios interesses e dos seus afazeres. Ser curador é uma
tarefa árdua, visto que demanda tempo, disposição e diversas
responsabilidades. Por isso, é justo que a missão gere uma recompensa
para quem a cumpre.
No julgamento do REsp 1.192.063, a
ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do STJ, entendeu que o
curador tem direito de receber remuneração pela administração do
patrimônio do interdito, conforme dispõe o artigo 1.752, caput, do CC.
Segundo
o dispositivo, “o tutor responde pelos prejuízos que, por culpa, ou
dolo, causar ao tutelado; mas tem direito a ser pago pelo que realmente
despender no exercício da tutela, salvo no caso do artigo 1.734, e a
perceber remuneração proporcional à importância dos bens administrados”.
O artigo refere-se à tutela, mas é aplicável à curatela, devido à
redação do artigo 1.774 do CC.
Apesar
disso, o curador não tem o direito de reter a renda do interdito e
fixar seu próprio pagamento. “A remuneração do curador deverá ser
requerida ao juiz, que a fixará com comedição, para não combalir o
patrimônio do interdito, mas ainda assim compensar o esforço e tempo
despendidos pelo curador no exercício de seu múnus”, disse a ministra.
No
caso referido, o filho era curador do pai, alcoólatra. As contas
prestadas por ele foram rejeitadas, sendo obrigado a ressarcir o
interdito em aproximadamente R$
440 mil. No recurso especial, o filho sustentou que a retenção da
importância seria lícita, pois representaria a remuneração pela
administração dos bens do pai.
Para
a ministra, nem o fato de o curador ser o herdeiro universal dos bens
do interdito é suficiente para livrá-lo da obrigação de devolver os
valores fixados e retidos indevidamente.
Disputa entre irmãos
Quando
o incapaz possui alto poder aquisitivo, a interdição, com o consequente
processo de curatela, pode gerar desavenças entre os membros da
família. Ao julgar um recurso especial em novembro de 2010, a
Terceira Turma do STJ analisou um caso em que oito irmãos, filhos de
uma mulher de 92 anos, detentora de vasto patrimônio, disputavam entre
si a administração dos bens da mãe.
Em
2001, quatro dos filhos da mulher ajuizaram ação de interdição contra
ela, por conta de uma doença própria da idade avançada - demência senil.
Os outros não eram a favor. Antes de decidir a respeito, o juiz nomeou
curadora provisória a filha que morava com a interditada e que,
consequentemente, mantinha um relacionamento mais íntimo com ela. Era,
inclusive, liquidante da empresa da família.
Juntamente com a atribuição de curador, vem o dever de prestar contas. Em 2002, a
curadora apresentou as contas, voluntariamente. No ano seguinte, o MP
nomeou perito contador para avaliar a ocorrência de prejuízos causados
por ela a sua mãe, os quais foram alegados pelos filhos que pediram a
interdição.
Ainda em 2003, a
sentença decretou a interdição da mãe, declarando sua incapacidade
absoluta para exercer os atos da vida civil. O magistrado nomeou
curadora a mesma filha, limitando o seu exercício aos atos de gestão e
administração dos bens da curatelada.
Em
2004, o laudo pericial concluiu que havia várias irregularidades na
prestação de contas apresentada, como despesas sem comprovação da
necessidade; gastos não revertidos em prol da curatelada; pagamento de
honorários a profissionais liberais sem a contratação da prestação de
serviço; recibos de profissionais de medicina e odontologia sem
especificação dos procedimentos feitos; gastos com joias, bebidas,
roupas e calçados para a curadora, além de uma prótese peniana.
Os
filhos favoráveis à interdição se manifestaram contra a curatela da
irmã. Pediram a rejeição das contas apresentadas e o seu afastamento ou
destituição do cargo para o qual foi nomeada.
Diante
disso, o juiz de primeiro grau decidiu afastar a curadora do cargo,
pela “ameaça de dano irreparável ou de difícil reparação ao patrimônio
da interditada”, e nomear como substituto interino alguém que não fazia
parte da família. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais manteve a
sentença.
Remoção ou suspensão
No
recurso especial interposto no STJ, os recorrentes (a curadora e os
irmãos favoráveis a ela) sustentaram que não houve a citação da curadora
para se manifestar a respeito do pedido de remoção. Sustentaram ainda
que tal pedido - proposto no andamento da ação de prestação de contas -
deve ser feito em procedimento judicial autônomo, conforme exigência
legal.
A
ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso especial, explicou que o
artigo 1.197 do Código de Processo Civil (CPC) estabelece que, se a
situação for de extrema gravidade, o juiz pode suspender o tutor ou
curador do exercício de suas funções e nomear substituto provisório.
“Ante
a possibilidade de demora na execução da medida de remoção - que,
inclusive, ainda poderá sujeitar-se a recurso - e desde que considerada a
presença de ameaça de dano irreparável ou de difícil reparação à pessoa
ou aos bens do interditado, terá lugar a suspensão da curatela, que, ao
contrário da remoção, que faz cessar o encargo, apenas suspende do
exercício da função o curador”, disse a ministra.
Ela
explicou que, ao contrário do que alegaram os recorrentes, o juiz
determinou a suspensão do exercício de curatela e não a remoção, porque
ainda seriam apuradas as possíveis irregularidades nas contas prestadas.
Segundo a ministra, na hipótese de remoção há a necessidade de processo
autônomo, com a observância da forma legal correspondente aos
procedimentos de jurisdição voluntária.
Em
seu entendimento, a medida de suspensão foi tomada no interesse da
interditada, “que deve prevalecer diante de quaisquer outras questões,
notadamente quando constatada situação de extrema desarmonia familiar,
envolvendo disputa de considerável patrimônio”.
Os
recorrentes não concordaram com a nomeação de um curador estranho à
família. Sustentaram que, além da curadora afastada, vários familiares
estariam aptos a exercer a curatela, visto que a desavença foi
constatada apenas entre os irmãos.
Entretanto,
segundo a relatora, diante do profundo desacordo familiar, o juiz agiu
de forma prudente quando escolheu pessoa idônea e sem vínculo com os
interesses da família.
Incapacidade processual
A
curadoria especial é uma das funções da Defensoria Pública. Conforme
dispõe o artigo 9º, inciso I, do CPC, o menor será representado
judicialmente por seus pais, seu tutor ou, na ausência destes, por
curador. Em outra hipótese, o juiz nomeará curador quando os interesses
do menor colidirem com os do seu representante legal.
Entretanto,
em julgamento realizado em outubro de 2011, ao interpretar o artigo
referido, o ministro Sidnei Beneti, da Terceira Turma do STJ, concluiu
que o curador especial só se dará obrigatoriamente ao incapaz que
detiver a condição de parte e não a todo e qualquer menor envolvido no
processo, ainda que sejam alegados fatos graves que possam colocá-lo em
risco.
“A curadoria especial exerce-se apenas em prol da parte, visando a suprir-lhe a incapacidade na manifestação de vontade em juízo. Não é exercida para a proteção de quem se coloque na posição de destinatário da decisão judicial”, disse Sidnei Beneti.
No
caso, o Ministério Público do Rio de Janeiro recorreu ao STJ contra uma
decisão que determinou a intervenção da Defensoria Pública em processo
ajuizado pelo Conselho Tutelar contra pais de menores, acusados de abuso
sexual.
O
ministro Sidnei Beneti entendeu que, para a proteção do destinatário da
decisão judicial (e não das partes) atua, em primeiro lugar, o juiz e,
em segundo, o Ministério Público, como representante da sociedade.
Entretanto,
“não se nega, evidentemente, a possibilidade de a Defensoria Pública
vir a usar dos instrumentos processuais disponíveis para atuação,
podendo promover ações e, mesmo, intervir como assistente de alguma das
partes em casos específicos em que se legitime concretamente a atuação”.
Destituição de poder familiar
Ao
julgar um agravo de instrumento em dezembro de 2011, em decisão
monocrática, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino manteve acórdão que
indeferiu a nomeação de curador especial em processo relativo à
destituição de poder familiar, no qual o MP é autor, os pais dos menores
são os réus e os incapazes não são partes.
Para
o ministro, a tese da obrigatória e automática atuação da Defensoria
Pública no processo não poderia ser confirmada, por três motivos: os
menores não são partes do processo, mas destinatários da proteção; a
ação de destituição do poder familiar está inserida nas funções
institucionais do MP e não houve prejuízo aos menores.
Os
recorrentes não ficaram satisfeitos com a decisão do ministro e pediram
a sua reconsideração em agravo regimental. Para eles, vedar à
Defensoria Pública o exercício da função de curador especial de criança
institucionalizada significaria ofensa ao estado democrático de direito e
ao princípio da proteção integral do menor.
Entretanto,
em abril de 2012, ao julgar o agravo regimental, a Terceira Turma
manteve a decisão, sustentando que somente se justifica a nomeação de
curador especial quando colidentes os interesses dos incapazes e os de
seu representante legal.
A
Quarta Turma se manifestou sobre o mesmo tema no julgamento do Ag
1.415.049. A Curadoria Especial da Defensoria Pública do Rio de Janeiro
recorreu ao STJ sustentando sua legitimidade para atuar como curadora
especial na defesa dos direitos da criança e do adolescente, em
procedimento de avaliação de reintegração de menor ao convívio familiar,
previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
A
ministra Isabel Gallotti, relatora do recurso, sustentou que “a
natureza jurídica do curador especial não é a de substituto processual,
mas a de legitimado extraordinariamente para atuar em defesa daqueles a
quem é chamado a representar”. No caso, ela explicou que os menores
tiveram o seu direito individual indisponível defendido pelo Ministério
Público, como substituto processual, na forma prevista na Lei 8.069/90.
Menor infrator
O
artigo 184 do ECA assegura ao adolescente infrator a representação
adequada em audiência de apresentação. Quando não localizados os
responsáveis legais do menor, é dever do magistrado nomear curador
especial.
Por essa razão, em junho de 2010, a
Quinta Turma do STJ negou provimento a recurso especial da Defensoria
Pública em favor de um adolescente que supostamente recebeu, transportou
e conduziu uma bicicleta, mesmo sabendo que era roubada.
A
Defensoria sustentou que a mãe do adolescente não pôde comparecer à
audiência por absoluta falta de recursos e que, nesse caso, deveria ter
sido nomeado curador especial. Pediu a nulidade do processo, a partir da
audiência de apresentação.
O
ministro Jorge Mussi, relator do recurso especial, entendeu que não
houve nulidade, pois a mãe do menor foi localizada e devidamente
cientificada da data de realização da audiência, não tendo a ela
comparecido. Além disso, a Defensoria Pública foi nomeada para atuar no
caso.
O
STJ entende que, mesmo quando os representantes do adolescente não são
notificados, se a Defensoria Pública fizer o acompanhamento, a audiência
não é nula.
“Assim,
não havendo nulidade quando inexistente a notificação de realização de
audiência de apresentação, incabível sua decretação no caso de ter sido
devidamente realizada a comunicação à responsável legal e esta, por
motivos diversos, não compareceu ao ato”, afirmou Jorge Mussi.
Réu revel
O
artigo 9º, inciso II, do CPC prevê a nomeação de curador especial para o
réu revel, citado por edital (quando não comparece em juízo para se
defender). Nessa hipótese, o curador, como representante legal, irá
zelar pelos seus interesses no caso, quanto à regularidade do processo.
Ele poderá contestar a ação em nome do revel.
“Tendo
em vista a precariedade da citação ficta [por edital ou por oficial de
Justiça], os revéis assim incorporados à relação processual terão
direito à nomeação de um curador especial”, disse a ministra Nancy
Andrighi no julgamento do REsp 1.280.855.
Para
a ministra, ainda que exista fundamento suficiente para confirmar o
mérito da ação, o magistrado não pode dispensar a oportunidade de
contestação ou nomeação de curador especial, “corolários dos princípios
constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo
legal, garantias inerentes a um estado democrático de direito”. Caso
dispense, haverá nulidade absoluta do processo.
No
processo, envolvendo a compra e venda de imóvel rural, havia 23 réus.
Sete foram citados pessoalmente e os demais, por edital. Após o
julgamento da ação pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), os réus
citados por edital recorreram contra o acórdão. Sustentaram que a
citação foi indevida, já que possuíam endereço conhecido. Alegaram que,
embora revéis, não lhes foi designado curador especial.
O
TJSP rejeitou o recurso, sob o fundamento de que, independentemente do
cumprimento das formalidades (citação pessoal e nomeação de curador), o
vício reconhecido na ação não poderia ser afastado.
Para
a relatora, a decisão do tribunal caracterizou negativa de prestação
jurisdicional, pois, ainda que tivesse convicção formada acerca da
decisão, deveria ter confirmado a regularidade das citações e da
nomeação de curador especial, “requisito indispensável ao
desenvolvimento válido e regular do processo”.
Conflito de interesses
“A
nomeação de uma das advogadas constituídas da parte autora, como
curadora da parte ré, por si só, evidencia um desvirtuamento do real
propósito do instituto da curatela, porquanto patente o conflito de
interesses”, disse a ministra Maria Thereza de Assis Moura ao julgar o
REsp 1.006.833.
Uma
mulher ajuizou ação contra a União pretendendo receber pensão pela
morte de seu companheiro, servidor da Marinha do Brasil. A União se
manifestou, alegando falta de citação da parte contrária à ação - no
caso, a ex-esposa do falecido, beneficiária da pensão. Não tendo sido
encontrada a pensionista, a companheira requereu sua citação por edital.
O
juízo de primeiro grau nomeou curador especial à parte ré (ex-esposa),
pertencente ao quadro da assistência judiciária federal. A pessoa
nomeada era uma das advogadas da autora (companheira). Diante disso, o
magistrado entendeu que, a partir do momento em que a advogada foi
nomeada curadora especial da pensionista, a procuração concedida a ela
pela autora tornou-se inválida. A decisão foi mantida na segunda
instância.
A
ministra Maria Thereza de Assis Moura explicou que a nomeação de
curador especial para aquele que é citado por edital e não comparece em
juízo para apresentar defesa tem a finalidade de evitar a quebra do
princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, visto que
não se tem certeza de que o réu foi informado a respeito da demanda.
“Desse
modo, não me parece razoável que a parte ré possa ser representada
judicialmente por um dos patronos da parte autora no mesmo processo,
porquanto patente o conflito de interesses”, disse a ministra.
A
ministra discordou das instâncias ordinárias a respeito da invalidação
da procuração concedida à advogada pela autora, sob o fundamento de que a
situação não se enquadra nas hipóteses legais de extinção de mandato
judicial previstas no CPC e no CC.
Alguns dos processos citados não tiveram o número divulgado em razão de sigilo judicial.
Processos relacionados: RHC 21667, REsp 1192063, Ag 1415049, REsp 1280855 e REsp 1006833
Fonte: Superior Tribunal de Justiça